Suéter

Medimos a intensidade do amor que sentimos pela quantidade de fins de mundo que construímos a cada separação. E na separação definitiva, na separação do pra sempre, a gente percebe que acaba se acostumando com o fim do mundo. Era nisso que eu pensava enquanto te via virar as costas mais uma vez. Lembro que foi entre um ponto e um contraponto, entre um cardigã e desenhos no guardanapo, que eu encontrei algo que me arremessou do círculo polar ao deserto do Atacama. Algo que me fez querer ancorar no teu suéter azul marinho.
Assim, cheguei ao lugar mais bonito do mundo. Lá havia tudo: as mãos do tamanho das minhas; o queixo do seu pai; a camisa do Mumford and Sons; o cabelo cor de mel quando o sol bate no final da tarde e cor de madeira quando não; o cachecol sendo enrolado no pescoço de novo, entre uma menção de desgosto pelo frio e outra; a fome crônica, o sono excessivo; o mesmo livro na cabeceira por meses; as quinhentas malas da mudança; a companhia e o coração enorme. Não sei por que tive que me perder de você. Não sei por que não pude seguir teus passos. Mas foi entre um por que e um porque, que me acostumei com o meu fim do mundo. Fim do mundo sem meteoros e eras glaciais, o fim do mundo da gente, a distância de quem se ama travestida de fim de mundo. Devo observar que não é algo que se aceita tão facilmente, esperamos por muito tempo que a pessoa apareça caminhando em nossa direção, do lado oposto da ponte; sentimos o perfume familiar nas calçadas forradas de rostos; temos solavancos no coração quando da dor ao perceber que os olhos não serão mais vistos do outro lado da faixa de pedestres. Mas depois de aceito, o renascer. As mãos automaticamente não procuram mais ninguém e se ajeitam nos bolsos quentes do casaco, as meias listradas escorregam como nunca no caminho do quarto para a cozinha e a caixa de chás esvazia-se com rapidez impressionante. “A gente se acostuma com o fim do mundo”, foi o que pensei ao te ver virando as costas pela última vez.
Tenho fome de me tornar tudo que não sou, tenho fome de ficção, tenho fome das fricções, de ser contra tudo que não sou, ser tudo que não sou, ser de encontro a outro, ser. Tenho fome do abraço, de me tornar o outro, me tornar o outro em tudo, me tornar o outro em tudo que não sou, mas não o nome distinto, o outro distinguido. Tenho fome de me tornar no que se esconde sob o meu nome, embaixo do nome, no subsolo do nome, o sob nome, por uma fresta num abraço contigo e assim habitar a ficção que me tornei. Me habituei em tornar tudo, todo, o tudo. E é por uma fresta de tudo, por uma fresta que tudo se fixa, por uma fresta as fixações penetram e passam a habitar.
Personagem do baile de máscaras, real, onde pessoas penetram e penetram pelas frestas e penetram num abraço contínuo, se casam, fazem casa, tornam-se uma escala crescente, milesimal, centesimal, decimal, inteira. E qual é a escala crescente ou decrescente pra saber se um milésimo, centésimo, décimo, inteiro, se revela no abraço contínuo, no abraço que me desvelou tornar.
Tenho fome de me tornar em tudo que não sou. Pessoa singular, pronome pessoal irredutível enquanto pronome, mas que se esconde, se expande, se estende sob, no sub solo do pronome eu, pessoal, irredutível e é qualquer coisa além, aquém. Qualquer dia destes eu passo pra te ver, gosto de você, de como você nem imagina, nem funciona sem tua ficção. Enquanto uso o que não tenho e o que não sou e com o mesmo fuso fundo de fundar o meu uso, eu fundo e não sou tudo que uso, tenho fome e afundo e não sou tudo. Tenho fome de me tornar, tenho fome de mim, tenho fome de ti, tenho fome da ficção e da fricção. Me aqueço, me aquece.
Eu me componho do que sou, não sou, do fundo do que funde e do que confunde. Minha composição, um modo de me tornar o não, o negativo e o vir a ser e o futuro e o passado e o passado perdido no presente. Tenho de me tornar tudo que toco, tenho de me tornar tudo, em tudo e nada, nada pode deixar de ser, nem se esconder, que nada se esconda sob o nome da palavra nada, nada, nem de leve o vento, por entre as frestas dos meus dedos, nada, nem de leve o vento por entre as frestas dos teus dedos, que nada -nunca- se esconda por entre as frestas dos teus dedos, senão os meus.

Releitura, Na esfera da produção de si-mesmo.
                 Waly Salomão.
Ao ir, me fez pequena, de modo que coube na mão.
Guardei comigo,
as ruas que asfixiamos de palavras,
o eco da tua voz e o teu cheiro em cada estação.
Falo agora, de mim e de ti, como pessoas saídas da ficção.
De modo distante, vazio.
Aprendi aos poucos que o que se deixa, não necessariamente
se perde.
Mesmo sem querermos, algo continua passeando por dentro de nós,
numa esperança desesperada
de que os pedaços perdidos e afastados se juntem.

Afinal, não somos também o que perdemos?

Percebo através de ti
E talvez justamente por isso,
que as coisas acontecem não exatamente do modo que eu gostaria
mas do modo que devem ser.

Incerto

Tento ser, só, tudo que
poderíamos ter sido juntos.
Tento caminhar com meus pés,
os passos que seriam seus.
Sinto, só, tudo que
seríamos, somos e deixamos de ser.
Sinto, sinto muito e sinto, só.

Fragmentos I

Teu sorriso contido,
transforma o amor contigo,
em fraco estalido
desconhecido.



Meus olhos doem
de te ver indo embora,
desde o momento em que chegastes.



E se eu apertar bastante os olhos,
parece que ainda vejo o céu que
coloriam os teus olhos.

Asas de Fuligem

Ao fechar os olhos suavemente,
sinto o desenho que se forma, como em raízes
pelo meu corpo, que rebentam.
Foi me oferecido o não e o mas,
pois nunca preferi silêncio.
Essa vivência no estado do quase,
de algo inascido, mas ainda assim permanente; não foi feito para mim.
Sempre me senti infinita demais pra me acostumar com o nada.

Mudas ao peso

Na volta solitária, no que se entende interna,
percorres o abismo das coisas.
Preso ao teu olhar que percorre o céu
em busca dos deuses;
Tem teu coração que corre o céu,
os rochedos, bosques e montanhas;
vasculhando ruínas de um tempo inacabado, aproveitando amanhecências de dias não vívidos
e de um destino que antes mesmo de ser, tornou-te um, só, entregador de adeuses.

Superfície

O que eu vejo em ti, no que te transparece,
na primeira camada do que tu é,
na tua superfície rasa;
Impermanência.


Passam

Feito flauta que ecoa som
      flutua com tuas ondas sonoras
vira-me pelo avesso das coisas
faz dançar nas fitas que sacodem o tempo
dissipa-se para longe, um ser ilha
            entrelaça-se com o mar
Entrelaça-me as mãos.


Tu és a minha viagem de volta.


O retorno ao que se sente.
A sensação de se estar em casa.
És o que se espera e por isso talvez também,
o que se quebra,
antes mesmo de perder.
Não se perde apenas, se fecha.
Enquanto quebrado e fechado;
Afoga-se.
No meu esquecimento.
No teu.
E flutuando para longe, deixa a calmaria,
do que antes era só tormenta.

Remendar o Vestido

Primeiro ato: ela o ama. Escreve o nome dele em um pedaço de papel e o pendura na árvore. Dizem que é uma árvore da sorte. Ela o ama muito mais que o mensurável para desejar qualquer outra coisa.

Segundo ato: ela o ama. Escreve "quero ver a paz que encontro nos olhos dele em todos os outros olhares que a mim se dirigirem" em um pedaço de papel e o pendura na árvore. Dizem que é uma árvore da sorte. Ela o ama muito mais que o mensurável. Mas já o suficiente para o deixar ir.
Levas com a correnteza que teus
olhos tem, toda a segurança que se havia construído.

Perde-se cada vez um pequeno pedaço,
mas não num arrancar de dor, perde-se pois é tu
o pedaço que era eu,
 e parte.

Como correnteza também retornas,
quando em outra direção.
Devolvendo-te a mim mais uma vez.

Ali percebo a falta que faz,
sentir toda a força da correnteza que teus olhos tem.




Em um amanhecer ele percebe que o incômodo da ausência despertou. Sente o envelhecimento de um sentimento ao longo do dia, como quem observa uma árvore na passagem das estações. Sozinhos, seus pensamentos começam a escrever as músicas que antes descreviam momentos. Ele se vê rearranjando palavras escritas, na esperança de que elas lhe digam algo. Querendo encontrar nas entrelinhas, o que ele sabe que não está mais ali. Percebe aos poucos, enquanto olha para as árvores altas e as estrelas que agora brilham no céu - num aviso silencioso, de que recordar é sempre a melhor forma de perceber o que agora nos falta. - que não se deve sussurrar um adeus a quem lhe subtrai dúvidas.
No amanhecer seguinte, com calma, ele tentará o caminho de volta.

Antes

No fundo nós dois sabemos
que esses versos simples
falam apenas de ti.

Deixe deles, comigo
a tua impressão.
E sobre mim,
recair teu olhar.
Deixe que teu sorriso acompanhe o meu,
deixe tua mão cair junto à minha.

No fundo nós dois sabemos
que esses versos simples
falam apenas de como seremos,
sempre, um do outro.




Re-cordis

Bom, eu não esperava que fosses ficar por muito mais tempo. Parece-me que desde o início estávamos fadados a nos separar. Separar. Não entenda mal, digo um separar mais profundo do que esses que simplesmente afastam as pessoas, pessoas que compartilharam todos os tipo de experiências e depois passam como desconhecidos pelas ruas ensolaradas, fingindo que o sol cegou a visão no instante em que a pessoa passava. Digo separar, de tirar. Levar pra longe.
Espero que não esqueças da primeira vez que nos vimos, pois eu ainda lembro dos seus pés no assoalho de madeira. Espero que saibas, que por vezes quando sozinha pela cidade, vejo você em outras pessoas. Ali percebo o quanto és importante, pois meu coração acelera só com a sua projeção no corpo de outras pessoas. Espero que lembres das nossas caminhadas noturnas e de como conseguíamos caminhar por horas, falando por horas, como se o tempo não fosse nunca passar; mas passou. E passou tão rápido. Não consegui caminhar contigo por todas as ruas que queria; Não consegui te fazer rir de todas as maneiras que queria. Nem te irritar o suficiente, fingindo não escutar o que tu dizia - mesmo tendo entendido já na primeira vez. É que era tão bonito de observar o quanto conseguias interpretar, uma mesma pequena frase, de diferentes formas. Espero também, que tenhas percebido o que acontecia comigo cada vez que estávamos juntos. E contigo também, consequentemente. Queria ter tido um pouco mais de tempo, só pra te contar detalhadamente, cada pequeno gesto seu que admiro. Saiba que fotografei você mentalmente de tantos ângulos diferentes, que conseguiria encher uma galeria com tuas fotos.
Espero não estar sendo repetitiva, sei que falo mais do que devia, mas é que sinto que ainda há muito o que se dizer. Acho que vou continuar, afinal sentiremos falta disso. De falar demais. Acho que a gente sempre falou demais. Não consigo me lembrar de muitos momentos em que ficamos em silêncio, os dois. Espero que tu tenhas me falado tudo que tivesses vontade de dizer, em todos os momentos, pois sempre estive preparada pra te ouvir. Existem tantas coisas ainda sobre as quais não conversamos. Tantos trocadilhos (ruins) a serem feitos. Parece que tu está indo pra cadeira elétrica, eu sei, mas deixe-me expressar o meu drama com minhas peculiaridades todas, por favor. Acho que percebi o que tu significaria nos momentos em que observavas os mesmos pequenos detalhes que eu, esses que ninguém percebe; o brilho do sol que reflete de um jeito bonito na janela. Sem nos darmos contas, chegamos na vida um do outro no momento exato em que deveríamos ter chegado, conseguisses enfim, não se atrasar pra alguma coisa - e agradeço muito por isso.
Quero te agradecer por todas as manhãs, tardes e noites que colorisses. Lembro com carinho de todas. Te odeio tanto por deixar lembranças tuas em cada ponto dessa cidade minúscula. És tão irritantemente presente que marcasses meu território mental até o Paraná. Falando em território mental, o meu está cheio de coisas que nunca vou te dizer, cheio de medos. Medos de todos os tamanhos. Medo de que esqueçamos, os dois, de como era sentirmo-nos na companhia um do outro. E de que toda essa cumplicidade seja empurrada pra longe com o passar das estações. Talvez sejam medos infundados, talvez eu descubra a existência de coisas até então inexistentes. Talvez não.
Sempre lembrarei de como aos poucos fosses invadindo todo o espaço, antes vazio, que existia em mim. Aos poucos. Até se tornar tudo isso que és agora. Coisa que na verdade nem sei. Não sei o que és pra mim. Não sei nem que tu és de verdade, em vezes cheguei a pensar que projetei em ti tudo que esperava ver em alguém. Mas minhas teorias todas se foram, levastes todas embora; fazendo tudo que eu menos esperava que alguém fizesse por mim. E o melhor? Nem sabias que o fazia, enquanto o fazia. Descobri assim que não queria me fazer feliz, apenas fazia. Sendo o que és.
Não sei em que momento você parou de entender o que eu estou tentando dizer, mas espero que entendas que isso que tivemos (seja lá o que for) foi bonito de tantas formas diferentes, que nem consegui organizar as palavras de forma conexa, mas espero que com estas, tu consiga entender.

Até logo.