Senha dois, por favor.

  Hoje pela manhã enquanto enfrentava um dos maiores temores da humanidade atual - a fila -  troquei algumas poucas, mas simpáticas palavras com um senhor de cabelos brancos, postura arqueada e mãos marcadas. Infelizmente não tivemos tempo de nos apresentar pois logo sua senha foi chamada, então só o que sei é que a dor que ele sente nas costas tem melhorado muito e que depois de marcar sua consulta teria que apressar o passo para não perder o ônibus.
  Depois de alguns minutos ao sair da sala, me dirigiu um aceno suave. Observei-o partir com seus passos incertos, fui com ele até onde meus olhos alcançavam. Antes de atravessar a porta em direção a rua ele parou por poucos segundos, ajeitou a camisa de flanela por dentro da calça social e aí então, partiu. Foi ali naquele exato momento, que todo o peso daquela vida caiu sobre mim.
Percebi que as marcas em suas mãos não eram só do trabalho pesado de uma vida inteira, que as costas arqueadas não se deviam somente as dores; ali estava o peso de muitas tristezas e grandes amores, as marcas nas mãos eram das centenas de carinhos trocados e também daquela mão amiga apertada em uma esquina qualquer a quarenta e tantos anos atrás. Entende?
Cada passo incerto daquele homem carrega tantas memórias que seria impossível de contar; seus ouvidos carregam a voz do Sinatra e a do homem que narrava o jogo na rádio. Seus olhos ao percorrerem as vitrines vêem chapéus e ternos cor de pêssego. Tem também o canto dos olhos dele que se observar bem, é possível enxergar pequenos sorrisos escondidos entre as rugas. Sorrisos que foram 'sorridos' com quem talvez nem está mais aqui. É como se a vida fosse uma grande mala, que cada um de nós vai enchendo enquanto o tempo corre.
   Espero que um dia, daqui quarenta e tantos anos, algum jovem olhe para mim e perceba o mesmo. Espero fazer uma mala de boas histórias, bonitas lembranças e sussurros de The Way You Look Tonight - porque Sinatra a gente não tira da mala nunca. Quero iluminar a vida de outra pessoa com a minha, como esse senhor fez comigo.

Durante o resto do dia, a única coisa em que consegui pensar foi se aquele homem conseguiu com todo aquele peso bonito de memórias apressar o passo o suficiente pra não perder seu ônibus.
Espero que sim.